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"A arte de passear passarinhos" de Faíza Hayat

A arte de passear passarinhos

Conheci Damião em Mata Escura, um subúrbio pobre de Salvador da Bahia. Era um adolescente magro, de olhos enormes e redondos, que brilhavam sem sossego contra o suave negrume da pele. Vi-o com duas gaiolas, uma em cada mão, e julguei que vendesse pássaros.
“Papa-capim”, disse-me: “machos. As fêmeas não cantam. São mais devagar.”
Agradou-me o canto dos pássaros. Quanto custavam?
O rapaz encolheu os ombros magros, surpreso. Não estavam à venda. Não lhe pertenciam. Ele apenas os passeava.
“Passeias passarinhos, tu?!”
Que sim, passeava-os. Os papa-capim cantam melhor se os passearem. Damião passeia outros pássaros: curiós, cardeais, coleiros, batuques, bicudos, arapongas, canários. Leva as gaiolas por entre o trânsito, num equilíbrio difícil, até um pequeno jardim e pendura-as numa árvore. Pagam-lhe por isso. Muito pouco, pois os proprietários das aves são gente humilde. O suficiente para não morrer de fome.
Damião já foi Cosme. Cosme era “avião”, o nome que se dá aos meninos que trabalham para os traficantes de drogas levando e trazendo encomendas. Depois deram-lhe uma arma. Chegou a ganhar 1500 reais por semana – cerca de 500 €. Comprou pulseiras de ouro. Relógios caros. Sapatos de ténis, roupas de marca.
Cosme tinha um irmão gémeo, chamado Damião, que não queria ter nada a ver com o tráfico. Passeava passarinhos. Uma noite a polícia entrou na favela e arrombou a porta do barraco onde os dois gémeos viviam com a mãe. Vinham à procura de Cosme e encontraram Damião. A mãe, desesperada, tentou chamar-lhes a atenção para o equívoco. Riram-se dela. Um dos polícias encostou uma pistola à cabeça de Damião e disparou. A mãe enlouqueceu de dor. Vagueava pelo abismo das ruas gritando o nome do filho morto. Cosme enterrou o irmão com os seus relógios e colares de ouro, óculos Ray-Ban, uns ténis que acendiam luzes. Enterrou-se a ele mesmo. A partir daquele dia passou a ser Damião. Fê-lo com tal convicção, tanto desprendimento e dedicação, que não só os vizinhos, os traficantes e a polícia se convenceram de que quem morrera fora de facto Cosme, como a própria mãe despertou uma manhã reconciliada com a vida.
“Damião”, perguntou a Cosme: “Você sabe me dizer como se chama a uma mãe que perde um filho? Essa dor não tem nome. Não chorarei mais. Seu irmão escolheu a morte. Você vai viver pelos dois.”
Limpou as últimas lágrimas e foi procurar trabalho na Feira de São Joaquim. Cosme, aliás, Damião, gosta do seu ofício. Conhece os caminhos que alegram os pássaros, o fresco das sombras que os fazem cantar.
É feliz? Talvez não, mas um dia chega lá.



Faíza Hayat, “XIS Ideias para Pensar”,
in Público, 12 de agosto de 2006

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